As transformações da sexualidade
- 06-05-2014
Em 1978, publicamos uma análise das primeiras 150 mulheres que frequentaram a consulta. A partir de 1980, os homens passaram a frequentar a consulta e iniciou-se uma nova colaboração com a urologia/andrologia. Em 1987, a consulta apresenta a sua casuística referente a homens e mulheres.
Constata-se que, até aos finais do século XX, os problemas disfuncionais masculinos eram hegemonizados pela disfunção erétil e pela ejaculação prematura, enquanto nas mulheres predominavam dificuldades na excitação sexual/vivência do prazer e incapacidade em ter orgasmo.
De uma forma geral, posso afirmar que os homens se preocupavam com a execução sexual, enquanto nas mulheres tudo girava à volta da legitimação do prazer sexual. Amostras jovens nos dois sexos (média inferior a 40 anos). Casos esporádicos de parafilia. Em meados dos anos 80, aparecem os primeiros casos de problemas ligados à identidade sexual, embora ainda muito polarizados pelos estereótipos masculino e feminino.
A partir do século XXI a apresentação dos problemas sexuais muda. Os homens que consultam são mais velhos, com mais comorbilidade orgânica, e a disfunção erétil continua a ser a queixa principal. Mas, embora com uma progressão lenta, os casos de inapetência sexual vão ganhando terreno.
Nas mulheres, a falta de desejo sexual passa a ser a queixa dominante.
De facto, a inapetência sexual, sobretudo feminina, torna-se num problema avassalador.
Mas o que é perturbador e, ao mesmo tempo, desafiante, é que nas poucas vezes que estas pessoas faziam sexo, este era gratificante e variado! As idades das mulheres têm um padrão menos definido. As mais novas, com perturbações dolorosas e as mais velhas, sem interesse sexual.
De uma forma um pouco redutora direi que antigamente, os nossos utentes queriam, mas não podiam e que, atualmente, as pessoas podem mas não querem. Fora do campo disfuncional, apresenta-se na consulta uma problemática mais variada. A transexualidade é muito mais visível e mais plástica. E aparecem as duas faces do abuso sexual de menores: vítimas e abusadores.
A evolução dos nossos utentes acompanha a evolução do papel da sexualidade na sociedade portuguesa. O que é fascinante no estudo da sexualidade e na prática da sexologia, são os inúmeros fatores bio-psico-sociais responsáveis pelo seu exercício. Daí que, para se compreender a sexualidade, a abordagem tenha que ser necessariamente bio-psico-social.
Nos primeiros tempos os nossos utentes mostravam uma grande ignorância sexual, muita dificuldade em exprimirem os seus problemas, muito marcados pelos tabus e interdições que caracterizaram a sociedade portuguesa até ao 25 de abril, em que a sexualidade era ferozmente regulada (Deus, pátria e família).
O coito dominava a cena sexual e o resto não passava de preliminares. O repertório sexual era escasso. As diferenças de género eram acentuadas. As mulheres estavam a iniciar o seu percurso para a igualdade social, política e...sexual. A paisagem sexual era, em geral, uniforme e polarizada.
As transformações da sexualidade acentuaram-se à medida que se aproximava o novo milénio. As interdições e tabus desmoronam-se. Os dois sexos iniciam-se mais cedo e, em comparação com as gerações anteriores, a iniciação feminina tornou-se muito mais precoce, aproximando-se da dos rapazes. Os géneros tendem para uma maior igualdade e o repertório sexual é mais rico. A diversidade sexual é a regra. Mas há muita confusão, incerteza e um certo desencanto. Na sexualidade, à semelhança do que aconteceu com a economia e com a estrutura social, constata-se uma enorme desregulação.
Tempos piores? Não, tempos diferentes. Cada geração tem as suas "tarefas" que não têm que ser as gerações anteriores a definir e balizar.
Defendo que a grande tarefa a nível da sexualidade humana é a recriação do erotismo. Com uma sexualidade estritamente regulada, o erotismo alimenta-se da transgressão. O grande desafio é qual vai ser a sua configuração, numa sociedade que aboliu a maior parte dos tabus sexuais.
Por Francisco Allen Gomes, médico psiquiatra
Artigo publicado no Jornal do Congresso das 16as Jornadas de Saúde Mental do Algarve
Sem comentários:
Enviar um comentário