quinta-feira, 8 de maio de 2014

As transformações da sexualidade

As transformações da sexualidade

Allen 1d6ccEm maio de 1975, abriu-se nos Hospitais da Universidade de Coimbra uma consulta de sexologia. Numa fase inicial, como estava sediada nas instalações da ginecologia, só recebia mulheres.

Em 1978, publicamos uma análise das primeiras 150 mulheres que frequentaram a consulta. A partir de 1980, os homens passaram a frequentar a consulta e iniciou-se uma nova colaboração com a urologia/andrologia. Em 1987, a consulta apresenta a sua casuística referente a homens e mulheres.

Constata-se que, até aos finais do século XX, os problemas disfuncionais masculinos eram hegemonizados pela disfunção erétil e pela ejaculação prematura, enquanto nas mulheres predominavam dificuldades na excitação sexual/vivência do prazer e incapacidade em ter orgasmo. 

De uma forma geral, posso afirmar que os homens se preocupavam com a execução sexual, enquanto nas mulheres tudo girava à volta da legitimação do prazer sexual. Amostras jovens nos dois sexos (média inferior a 40 anos). Casos esporádicos de parafilia. Em meados dos anos 80, aparecem os primeiros casos de problemas ligados à identidade sexual, embora ainda muito polarizados pelos estereótipos masculino e feminino.

A partir do século XXI a apresentação dos problemas sexuais muda. Os homens que consultam são mais velhos, com mais comorbilidade orgânica, e a disfunção erétil continua a ser a queixa principal. Mas, embora com uma progressão lenta, os casos de inapetência sexual vão ganhando terreno. 


Nas mulheres, a falta de desejo sexual passa a ser a queixa dominante. 
De facto, a inapetência sexual, sobretudo feminina, torna-se num problema avassalador.
Mas o que é perturbador e, ao mesmo tempo, desafiante, é que nas poucas vezes que estas pessoas faziam sexo, este era gratificante e variado! As idades das mulheres têm um padrão menos definido. As mais novas, com perturbações dolorosas e as mais velhas, sem interesse sexual.

De uma forma um pouco redutora direi que antigamente, os nossos utentes queriam, mas não podiam e que, atualmente, as pessoas podem mas não querem. Fora do campo disfuncional, apresenta-se na consulta uma problemática mais variada. A transexualidade é muito mais visível e mais plástica. E aparecem as duas faces do abuso sexual de menores: vítimas e abusadores.

A evolução dos nossos utentes acompanha a evolução do papel da sexualidade na sociedade portuguesa. O que é fascinante no estudo da sexualidade e na prática da sexologia, são os inúmeros fatores bio-psico-sociais responsáveis pelo seu exercício. Daí que, para se compreender a sexualidade, a abordagem tenha que ser necessariamente bio-psico-social.

Nos primeiros tempos os nossos utentes mostravam uma grande ignorância sexual, muita dificuldade em exprimirem os seus problemas, muito marcados pelos tabus e interdições que caracterizaram a sociedade portuguesa até ao 25 de abril, em que a sexualidade era ferozmente regulada (Deus, pátria e família).

O coito dominava a cena sexual e o resto não passava de preliminares. O repertório sexual era escasso. As diferenças de género eram acentuadas. As mulheres estavam a iniciar o seu percurso para a igualdade social, política e...sexual. A paisagem sexual era, em geral, uniforme e polarizada.

As transformações da sexualidade acentuaram-se à medida que se aproximava o novo milénio. As interdições e tabus desmoronam-se. Os dois sexos iniciam-se mais cedo e, em comparação com as gerações anteriores, a iniciação feminina tornou-se muito mais precoce, aproximando-se da dos rapazes. Os géneros tendem para uma maior igualdade e o repertório sexual é mais rico. A diversidade sexual é a regra. Mas há muita confusão, incerteza e um certo desencanto. Na sexualidade, à semelhança do que aconteceu com a economia e com a estrutura social, constata-se uma enorme desregulação.

Tempos piores? Não, tempos diferentes. Cada geração tem as suas "tarefas" que não têm que ser as gerações anteriores a definir e balizar.
Defendo que a grande tarefa a nível da sexualidade humana é a recriação do erotismo. Com uma sexualidade estritamente regulada, o erotismo alimenta-se da transgressão. O grande desafio é qual vai ser a sua configuração, numa sociedade que aboliu a maior parte dos tabus sexuais.

Por Francisco Allen Gomes, médico psiquiatra

Artigo publicado no Jornal do Congresso das 16as Jornadas de Saúde Mental do Algarve

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